quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

veraneio

segurando a tempestade em meus olhos para não molhar o travesseiro que vem guardando as mais suportáveis horas do dia

com as mãos de quem roeu as unhas até sangrar por qualquer motivo validado por manuais de psicologia

cercada por barulhos barricadas bombas de efeito imoral gente querendo o conflito e gente querendo o fim

incluindo eu

pronta para descansar

mas teimosa o suficiente para esperar um pouco mais para saber se a tempestade vai passar


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

na janela do meu quarto

na janela do meu quarto

onde sinto o cheiro do jantar que está sendo preparado pela vizinha

onde vejo relâmpagos

onde ouço a chuva

onde sinto o vento

onde já presenciei lares sendo construídos onde antes era apenas floresta

onde fumei o meu primeiro e o meu último cigarro

onde me descobri artista

onde me descobri mulher gente ser cientista professora animal força acaso sorte reconstrução

onde pensei nos rapazes e nas mulheres que eu amei

onde vi a minha mãe criando um jardim no cimento

onde já pensei em suicídio

onde consigo ver um riacho que a minha avó contou que antes também passava pelo nosso quintal

onde infinitas vezes eu já observei a minha avó

onde eu senti o cheiro do café da minha avó

onde eu sorri pra minha avó

onde eu briguei com a minha avó

onde eu já senti o maior amor do mundo

onde lutei brigas que só existiam em minha cabeça

onde eu sentei por noites seguidas pensando se a vida seria só isso

onde eu sentei pra ler um livro e pensei que a vida poderia ser só isso

onde eu quebrei o vidro da janela por raiva

onde eu reformei a janela inteira com cimento massa lixa tinta 

onde eu olho agora e me acho a pessoa mais sortuda do mundo por ter tudo o que preciso

onde eu cresci

onde fui criança e joguei bonecas no quintal do vizinho

onde fui jovem e praguejei a vida

me vejo adulta

e percebendo com clareza que essa é uma das últimas vezes que eu vou olhar pela janela do meu quarto com os mesmos olhos que olhei pela janela do meu quarto nos últimos vinte e oito anos

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

quando você se cala

quando você se cala, eu preciso voltar a fumar.
quando você se cala, o Dylan morre.
quando você se cala, você descobre que o meu maior medo não é o fundo do mar.
quando você se cala, é pessoal.
quando você se cala, a vitrola arranha o meu disco do Tom Waits.
quando você se cala, falta luz.
quando você se cala, eu não me importo mais com o local que você vai escolher para jantarmos. 
quando você se cala, ter o edredom roubado à noite parece um presente.
quando você se cala, falta água.
quando você se cala, eu não ligo mais para todas as coisas que não sei.
quando você se cala, eu confesso os meus segredos mais vergonhosos para a platéia do Nobel.
quando você se cala, eu prometo que vou viver o presente intensamente caso você volte a falar.
quando você se cala, falta vírgula.
quando você se cala, eu queria ser apenas a parede a qual você encara.
quando você se cala, eu não tenho mais memórias dos natais da década de 90.
quando você se cala, é como se eu não houvesse conhecido a minha avó.
quando você se cala, seria agradável caso eu apenas houvesse perdido a audição.
quando você se cala, a Emmanuelle Riva perde o Oscar novamente.
quando você se cala, o blues deixa de existir.
quando você se cala, Van Gogh desiste de pintar antes de começar.
quando você se cala e eu falo e você se cala, não há outra coisa que eu espere senão por você.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Noite estrelada no laboratório de ciências

Eu sou um conjunto de conceitos que jamais compreenderei. Conceitos em formação, conceitos refutados, conceitos não descobertos. Em mim, a mecânica quântica e a relatividade geral, a limitação cerebral causada pela linguagem, a teoria do caos e toda ordem e determinismo paradoxais nela, o pós-positivismo e cientificismo brincando de ciranda, enquanto minas terrestres passam do prazo de validade e tornam-se inofensivas para crianças que irão brincar de amarelinha naquela terra em alguns anos. Eu sou toda vitalidade dos meus órgãos cobertos pela pele que em contato com outro corpo passou a ter cheiro de melissa e alecrim. Meus olhos, coletando luz, invertendo imagens, transformando-as em impulsos eletroquímicos, em toda sua complexidade, desenvolvem com facilidade o papel de me ver refletida, nua, na tela do computador, enquanto estou em uma varanda tão alta que atrás de mim apenas nuvens. Eu sou um conjunto de tudo. Eu serei tudo, em um universo infinito, com infinitos arranjos.
O universo possui uma fonte inesgotável de absurdos e em mim há uma amostra, dotada de liberdade cedida pelo Leviatã, desse amontoado de contradições que não se distinguem. Radiação cósmica de fundo, supernovas e pulsares, mas também óculos embaçado pelo vapor do chá, molhar as plantas e receber cafuné. O horizonte de eventos do suposto buraco negro ao centro da Via Láctea guardará toda história do que fui e do que serei? Não sei, mas também ninguém sabe. Em mim há uma Noite Estrelada e mesmo sendo, nada sou. No entanto: tudo serei, de forma infinita. O caos não é aleatório ou assustador.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

marinheiros

entre estudar como a narcoguerrilha se organiza, pra minha pesquisa acadêmica, e ouvir a fiona apple cantando "i'm building memories on things we have not said", traguei e te deixei ir. você nunca ficou, mas te deixei ir como se fosse nossa opção. e foi. foi nossa opção e você também foi. navegando, controlando o leme de um pequeno navio, sorrindo e com um cigarro na boca. eu, em terra firme, acenei. sorrimos e fomos. o que ficou não fomos nós. nós fomos. ficaram todas as coisas entre o "tá sozinha aqui?" e o "tchau", ambos tão simples que mal me permitem descrever toda toda tempestade de verão entre eles. mas foi assim, fomos assim. você foi, eu fui. na verdade eu só deixei de ir e você deixou de buscar. no nosso tempo. no tempo que não é agora. no tempo que, como nós, também foi. mas a visão de você sorrindo, com os dentes amarelados pela nicotina, encarando o mar à frente com todo o teu despreparo pra viver e tua bagunça que nem importa e toda honestidade que sempre enxerguei em você, e eu acenando boa viagem! do litoral, com bandeira branca e um sorriso honesto, não deixa ninguém mais, além de nós, saber que finalmente fomos. e, querido: seja! eu também serei.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

segunda

vem. vem na segunda. vem na segunda, porque na terça eu encontrei meu corpo perdido em um outro corpo, outra cidade, outra cama, e depois em outro chão de banheiro. vem na segunda, porque na quarta eu me vi mentindo e trapaceando, e eu já nem sou tão jovem pra isso. vem na segunda, porque na quinta, depois de curar a ressaca e lavar o rosto pelo menos dez vezes, eu resolvi tentar de novo. vem na segunda, porque na sexta eu tentei de novo e, em outro corpo, não encontrei o que procurava. vem na segunda, porque no sábado eu descobri coisas novas sobre a nebulosa de órion e quis te contar. vem na segunda, porque no domingo eu acordei mais cedo, pintei e redecorei o quarto inteiro, bebi e ouvi o Black Album, ri e chorei, terminei aquele artigo sobre inteligência artificial pra mandar pra aquela revista norte-americana e só queria gastar as horas que sobraram te ouvindo contar mais sobre o teu livro.
que belo mês escolhi pra parar de fumar. que propícia hora pra largar de vez os ansiolíticos e ser ao mesmo tempo cética quanto aos placebos indicados pra substituí-los. que ideia brilhante a de sentar na varanda, em meio a uma tempestade de verão, de calcinha e sutiã. que momento maravilhoso da madrugada quando sono nenhum se agarra a mim e o peso de tudo o que eu poderia ser me cobre, como manta, e me deixa aterrorizada e imóvel, enquanto olho as gotas de chuva que não me atingem. que absurda a vontade de te ligar, às 2:17 da manhã, inspirada por um raio no céu que iluminou o lugar nas minhas coxas onde eu sentia cócegas quando você beijava.
me distraio porque lembrei que preciso colocar as minhas plantas pra tomarem banho de chuva. coloco o roupão, faço o que tenho que fazer, sento de novo na cadeira fria da varanda, dessa vez escolho vinho, e termino depois de quase uma hora, com a ajuda das luzes dos outros apartamentos e dos raios, aquele escrito sobre o que perdi de poesia, do que era, sou ou poderia ser; Você ou a Nicotina, foi como chamei o poema.
o frio então me vence e decido entrar. mas você tem as chaves e a noite vai ser longa. então vem. se eu não te ouvir, faz barulho. mas vem. vem segunda. vem uma segunda vez.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Dezembro.

No olho do furacão, a saída mais fácil é a certa?

Sentir, sentir assim e sentir a todo momento só acontece por estar viva. Me disseram essa semana que eu acho que sou obrigada a sentir tudo o que deve doer, e que eu acho que preciso dessa dor, mas se não fosse pra sentir absolutamente tudo, por que eu estaria viva? E se sinto de tal forma, mudar não seria escapar do que sou? Entendo Darwin, eu juro, mas eu já abro mão de tantas coisas.

Hoje completou 5 anos desde que conheci um bom cara. Três anos depois, eu tive esse cara e ele me teve. Eu pude ter esse cara outras e outras vezes, mas ele se foi pelos espaços entre meus dedos finos e ossudos. Ele ainda é um bom cara. Eu ainda não sei se fui eu quem o colocou porta afora ou se foi ele quem achou as chaves e resolveu sair. Talvez eu tenha balançado as chaves na frente dele, com o desdém que só eu sei mostrar quando não entendo o que sinto, por saber que se eu não aguentaria que isso fosse feito comigo, meus semelhantes também não teriam sangue frio. Todos eles foram um pouco iguais a mim, por isso eu sempre soube como fazê-los ir pensando que ir fosse ideia deles, não minha. Então eu chorava, fazia poesia e nunca aprendia. Deus! Há pais pedindo permissão pra matar as filhas, no leste da Síria, pra que elas não sejam capturadas e estupradas por seres humanos, com armas e dentes, que estão chegando em suas cidades. Algumas delas cometendo suicídio antes. Morrendo porque morrer doerá menos. Há semelhantes morrendo pra não viver sentindo-se mortos. E eu? Patética e egoísta.
- Sabemos que um espinho no dedo da gente é pior que o genocídio de uma tribo na Polinésia. Dói mesmo. Não é egoísmo. - O Luiz entende de solidão, sabe o que me dizer.
Resolvi que dessa vez, dessa única vez em vinte e três anos, seria diferente. Senti sendo diferente, vivi sendo diferente, mas não foi. Talvez seja esse o meu motivo: eu não sei o que é viver de outra forma. Então termino mais um dia olhando a chuva do meio de dezembro molhar o pedaço da cortina que o vento sugou pra fora da janela, talvez aceitando que comigo nunca será diferente, talvez começando uma revolução. Mas estarei viva pra saber.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

escrevo

escrevo para doar sangue.
escrevo por ser imprudente.
escrevo pois quero ter filhos.
escrevo para tomar consciência.
escrevo pela simetria e pelo caos.
escrevo para continuar respirando.
escrevo pois alguém precisa fazê-lo.
escrevo quando desprezo o que existe.
escrevo quando penso no que não existe.
escrevo para ter algum controle sobre mim.
escrevo porque não tenho controle sobre mim.
escrevo porque aprendi sozinha a me manter viva.
escrevo porque nunca soube como fazer outra coisa.
escrevo para que o tempo passe e também para que pare.
escrevo pois tudo passa e nada para, e eu não me conformo.
escrevo porque conheço Navegantes Bandeirantes Diplomatas.
escrevo porque tenho uma péssima memória e um grande apego.
escrevo porque meu avô me levava de bicicleta até o jardim de infância.
escrevo pois às vezes tenho medos demais e noutras não tenho medo algum.
escrevo por duvidar que eu possuía alma até o dia que naveguei no São Francisco.
escrevo pois é quando escrevo que me entendo, e só me entendendo consigo escrever.
escrevo porque toco e ouço, leio e ouço, falo e ouço, vejo e ouço, pinto e ouço, ouço e ouço.
escrevo pra saber que existo quando sento no chão do banheiro esperando o remédio fazer efeito.
escrevo pois sempre soube que a sanidade é um fino fio que pode a qualquer momento arrebentar.
quando não escrevo, a nuca formiga, a respiração desregula, as cores e os sons se misturam, os pensamentos não têm ordem e a loucura parece estar batendo na minha porta, mas assim que as palavras tomam forma no papel, é como se os profetas, disfarçados de amigos numa roda de conversa ou de estranhos que acabei de conhecer no bar enquanto me desesperava por miudezas, estivessem certos quando disseram que tudo ficaria bem. escrevo por mim, por eles e por todos os outros. escrevo porque sei, porque não sei e porque quero saber. escrevo porque escrever não é opcional.

sábado, 29 de outubro de 2016

Inércia

Não importa o que não fiz, aqui se paga de qualquer forma. Então pague essa dose e pague a jukebox para tocar uma das nossas. Não negligencie o que tem pressa, sei que você não iria permitir outro nesse lugar. Eu não estaria aqui de cara lavada e sem cigarros se não fosse esse dia de merda. Lembrei da última vez que te vi tão de perto, enquanto você segurava meus cabelos para trás e eu abraçava o vaso sanitário, no chão do banheiro; então, é quase isso, preciso de alguém para segurar meus cabelos enquanto eu destruo algo bonito essa noite. Alguém pra sentar encolhido comigo, na poltrona em frente à lareira que trabalhei semanas para pagar, e apenas me segurar. Ou ficar aqui, desenhar com a ponta da chave do carro algo na madeira do balcão e não me deixar pensar em nada senão vaguear entre assuntos de lavanderia e uma pequena pauta sobre como essa mecha rebelde no seu cabelo fica impertinentemente adorável quando cai sobre o seu olho. Apenas isso, alguns analgésicos e você essa noite.

sábado, 15 de outubro de 2016

último

"não segure a vida com os dentes. segure com os lábios."

você não foi o primeiro a querer me dizer isso
a elogiar as minhas inseguranças
ou entender
entender que eu não sei usar pontuação
que falo demais às vezes
e de menos noutras
que postergo alegrias e tristezas e fico agoniada nesse meio termo
que tenho medo de ter medo
que tenho medos demais
por ser indecisa
e ter uma péssima memória da qual você não foi o primeiro a rir
por eu querer T U D O
por eu não ter N A D A
por me apavorar com o fundo do mar
e me dedicar a todos os detalhes que me levam a psicose
por amar e odiar na mesma medida a efemeridade

você não foi o primeiro em coisas que eu lembro quais foram os primeiros e às vezes você se importa com isso às vezes você não se importa com isso
você me procura e grita saudade! você me deixa e eu escrevo sonetos sobre ela
sobre a saudade de me importar que
você me lembrou e lembrou
o que é não ter
o que são tantas coisas que esse corpo já havia desistido ou esquecido por ser mais conveniente

você não foi o primeiro a me lembrar do que faz mal
você não foi o primeiro a despertar em mim a vontade de me livrar do que faz mal
mas se houveram outros
que beijaram as minhas inseguranças
antes de você
que o fez ontem
é porque nunca houve um último
é porque não há outro último
além de você?
que me confunde que me questiona que me dá meias respostas que me faz querer descansar num banco contigo em meu colo fazendo perguntas que me constrangem mas que respondo mesmo assim porque você me explicou você foi o último a me explicar que não não devo hesitar que devo lhe contar sobre tudo sobre tudo o que machuca a mim ou a você

você não foi o primeiro

você não acredita no sempre
e disso eu lembro porque
pensei:
como eu

mas
ah

que
ri
do

eu me livro de qualquer exigência
menos da certeza que preciso
que só palavras lavadas com a água mais limpa
e cantadas
por você
em meu ouvido
pra mim só pra mim
não em meio a multidão
não em meio a respostas a outras perguntas que já nem têm importância
podem me convencer

fico nua
de qualquer pretensão
menos da esperança do eterno