sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Setembro

Minha parte preferida do dia foi, depois de chegar em casa tarde com a maquiagem meio borrada e o cabelo molhado pela chuva e as esperanças deixadas no último ponto de ônibus e as roupas amassadas e as mãos sujas, iluminar a janela com a ajuda do isqueiro e lembrar de você. Não choro, nem mesmo gosto de você, mas velhos maus hábitos e melancolia são coisas que nem um apartamento novo ou um aumento conseguiram tirar de mim. Daqui é bonito o mundo. A janela é grande o bastante pra sentar nela porque, apesar de alta, continuo magra - demiti a nutricionista e o analista -, e essas árvores!, essas árvores foram o motivo de eu ter escolhido esse bairro.
Suas mãos eram brutas, lembro, mas o que elas faziam ainda enchem meus olhos de lágrimas. Hoje escrevo mais do que penso em escrever, você não acreditaria. E ainda nem é carnaval. Ainda nem estamos sambando na Lapa tentando adivinhar quem está atuando. Nem é fevereiro.
Um amigo foi pra guerra. Uma amiga foi pro manicômio. Eu faço a ponte, às vezes, quando não tô dando duas batidinhas no balcão do bar, pro Seu Júlio perceber que meu copo tá vazio, ou quando não tô dormindo com roupas que nem são minhas e tenho que dar bom dia pra um porteiro desconhecido porque tive que descer pra comprar uma escova de dentes. Mas como ele, como ela, aqui da janela com vista pra área nobre do Rio de Janeiro, também corro o risco de ser encontrada por uma .45 ou do lítio não fazer mais efeito.
Um amigo, hoje, fez questão de me mandar uma mensagem do hospital, dizendo assim, na lata e sem porquê, que eu era um centauro de duas cabeças que não sabia para onde apontar a flecha. A Sylvia Plath disse de um jeito mais doce que são muitos figos na figueira da vida, e que escolhê-los é preciso, mas a imagem da porra de um centauro de duas cabeças sem saber fazer escolhas comprimiu esse coração que passou por uma radiografia na semana passada.
Tá tudo bem, mas eu tô ficando velha. E eu sei que tô ficando velha porque digo que tô ficando velha sem me orgulhar e porque o niilismo não tem mais graça. O que eu tenho é meia dúzia de móveis, uns trocados e essa vontade de que tudo o que preciso fazer essa semana pudesse ser feito daqui, enquanto olho essas árvores pela janela.
Lembrei de você porque você é alguém cujas mãos eu não imagino fazendo coisas que não querem fazer. Espero que esteja bem.

Um comentário:

  1. A Michele diz que quando lê algumas coisas minhas, fica triste por não ser uma história toda. Eu senti isso aqui. Isso, sendo um romance, seria um grande romance. Você é uma grande escritora e espero que venha convivendo bem com essa condição.

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